Homilia no II Domingo da Páscoa B 2021
1. Imagino que a pedra de tropeço deste Evangelho seja, para muitos, a dúvida de Tomé. Para mim, sinceramente, não é. A minha pedra de toque são os troféus que Jesus apresenta como credencial da sua vitória pascal sobre a morte: Jesus exibe as suas feridas, os sinais dos cravos da sua crucifixão e desafia Tomé a pôr o dedo nas feridas. Esperávamos nós que Jesus conduzisse Tomé à fé por via de algum milagre, graças a algum feito ou efeito extraordinário. Mas não. Jesus exibe as feridas para dizer que o Ressuscitado não é uma ilusão, a projeção de um desejo. O Ressuscitado é o Crucificado. Mas, ao mostrar as feridas, Jesus está também a dizer-nos que a Sua Ressurreição não O descolou nem O deslocou ou isolou do nosso sofrimento.
2.O sofrimento, que se torna para muitos a tal pedra de tropeço na fé, é, para outros, a experiência humana mais fraturante, capaz de abrir uma brecha naquelas portas do coração cerradas e encerradas a Deus. A experiência do sofrimento é talvez aquela que mais reclama por um sentido, que mais desperta em nós a sede de um Deus e de uma resposta da parte d’Ele. Ora, só um Deus humano, ferido por amor, pode responder pela dor, por todas as nossas feridas!
3. Ao mostrar as suas feridas, Jesus mostra-nos que o drama do sofrimento não se resolve a culpar Deus ou a inocentá-l’O, porque uma coisa ou outra acabariam por excluir Deus da pergunta. Ora, quando alguém pergunta a Deus ou reclama, no fundo, chama por Ele e tem-n’O ainda em conta. Assim o confessou Miguel Torga: “Deus: o meu eterno pesadelo. Tive sempre a coragem de O negar, mas nunca a força de esquecê-l’O». É em Deus e diante de Deus, é com Deus que podemos dialogar e encontrar o sentido último para a dor. Fique claro que Deus não envia pandemias, nem acidentes, nem dor, doença ou sofrimento, para nos ensinar alguma verdade! Nem Deus envia sofrimentos ao mundo nem tão-pouco os permite, porque tal implicaria acreditar que, podendo evitá-los, Ele não o faz.
4. Mas não. Em Cristo Crucificado e Ressuscitado, Deus revela-Se um Deus ferido e solidário com a nossa dor, um Deus que faz do sofrimento humano a sua causa. Ouvimo-l’O soltar aquele brado lancinante «meu Deus, meu Deus porque Me abandonaste» (Sl 21/22, 2), de tal modo que ali, todo o clamor pela dor humana coincide com o clamor do próprio Deus. Deus grita a nossa dor. Nessa hora, Jesus aceita livremente sofrer, mediante uma decisão determinada pelo Amor, pois, no fundo, é o Amor que salva tudo. A beleza que salva o mundo é este amor que partilha a dor, é o amor que tudo suporta, é aquele «fogo do amor que nem as águas torrenciais podem submergir, porque mais forte do que a morte é o amor» (Ct 8,6-7).
5. Irmãos e irmãs: morto e ressuscitado, Cristo sofre connosco, partilha a nossa paixão e acompanha-nos no sofrimento. Peço-vos, então, que façamos deste tempo pascal um tempo para nos aproximarmos dos outros, para tocarmos as muitas feridas abertas por esta pandemia: a solidão e o luto, o desemprego e o desespero pela falta do necessário, o cansaço e o desânimo, a revolta e a dúvida, o arrefecimento ou a perda da fé. Procuremos e ofereçamos aos outros os sinais vitais da Ressurreição, tocando as suas feridas. Façamo-lo com a força frágil da nossa fé, com a ternura do amor! Não vamos lá com a fé inabalável, mas com a fé ferida pelas dúvidas, com a fé que suporta o peso do mistério da dor e permanece fiel, na esperança de um tal amor mais forte do que a morte. Seja a nossa fé… a fé no Amor de Deus, Amor ferido pela dor, mas sempre vencedor.
Tende esta certeza e dai testemunho dela, em gestos que a traduzam melhor: O amor, mais forte do que o pecado e a morte, é a raiz e o segredo, é a matriz geradora e a força motriz da Ressurreição. E assim, tal como Jesus continua a sua Paixão, nas feridas abertas por esta pandemia, também a sua Ressurreição se manifesta na beleza do amor em todos aqueles que se tornam, para os outros, ministros da consolação.