Homilia na Celebração de Sexta-Feira Santa 2021
1. De máscara no rosto, temos ainda o olhar como remédio! Não podemos tocar, nem beijar, nem abraçar, nem tampouco a Cruz. Mas uma simples troca de olhares pode resgatar-nos do anonimato, da solidão, da tristeza, da fome e da sede de amor. Quantas vezes nos é tão consolador apenas um olhar, mesmo se refletido e invertido no espelho dos nossos aparelhos eletrónicos?!
2. Hoje é dia para olhar e deixar-se olhar pela Cruz do Senhor. Porque na Cruz de Jesus cruza-se este duplo olhar: por um lado, a Cruz põe e expõe a olho nu toda a força negativa do mal e do pecado humano: sim, a Cruz é o espelho pelo qual podemos ver o mal em toda a sua nudez e atrocidade; nela vemos como a violência cresce em espiral, de um lavar das mãos a uma bofetada, das palavras ofensivas à crucifixão e morte. A Cruz é o espelho no qual vemos o nosso próprio mal. E vemo-lo sem máscaras e sem desculpas! Mas por outro lado, na Cruz vemos o Filho de Deus, suspenso e elevado, aliado do Pai no combate contra o mal, dando a Sua face, olhando-nos sempre com misericórdia, oferecendo-nos o Seu largo abraço. Olhemo-nos e deixemo-nos olhar, ao espelho da Cruz, sem máscaras!
3. Irmãos e irmãs: a celebração desta Sexta-Feira Santa de 2021 é marcada sobretudo pela ausência de um sinal, que afinal faz toda a diferença: hoje não podemos beijar, tocar ou abraçar a Cruz! Quanta dor, quanto amor, nesta abstinência dos afetos. Porque esta renúncia ao toque, ao beijo, ao abraço… é o sinal que nos remete para um dos mais dolorosos sacrifícios que a pandemia impôs: distanciar-se, não tocar, não beijar, não abraçar! Deste modo, o nosso olhar volta-se inteiro para o olhar de Jesus, que nos abraça e alcança do alto da Sua Cruz. Atado, de pés e mãos, nem por isso Jesus deixa de nos alcançar com o Seu olhar, de nos tocar o coração, de nos abraçar naquele gesto largo dos Seus braços abertos, naquele abraço desmedido a cada ser humano e ao mundo inteiro.Na Cruz, Cristo abraça as nossas contradições e contrariedades. “Na cruz, o Senhor abraça e une o que nos agrada e o que não gostamos, o luminoso e o obscuro, o sadio e o doentio, o forte e o débil, o vivido e o não vivido, o conseguido e o fracassado, o consciente e o inconsciente” (DOM CARLOS AZEVEDO, Abraço pascal, in Publicação no seu perfil do Facebook, 25.2.2021). Este abraço de Cristo, mesmo quando atado à Cruz, permite-me reconhecer a beleza do amor de Deus na minha debilidade, na minha fragilidade, naquela Cruz que passa por mim nas imagens de tantas vidas partilhadas e espartilhadas, feridas e sofridas pela desolação e pela incerteza, pelo medo e pela angústia, pela morte e pelo luto. Mas, por meio da Cruz de Cristo, a vida é-nos doada, a esperança é-nos restituída!
4. Em tempos de pandemia, a Cruz educa os nossos afetos, purificando-nos do sentimentalismo piedoso, para nos fazer olhar para os outros com misericórdia e amor, para nos fazer estender os braços a quem vive na solidão, a quem carece de pão e de esperança, a quem espera uma palavra de consolação ou uma cura, ou um abraço de reconciliação.Onde houver uma Cruz a abraçar, aí estará Cristo a mover-nos, com a força irresistível do Seu olhar de amor por todos e por cada um.
5. Irmãos e irmãs: atados nos movimentos para o toque, para o beijo ou para o abraço à Cruz, tesouro da nossa redenção, rezemos ao Senhor com estas palavras de um Hino da Liturgia das Horas, que hoje fala pelo meu coração. Com este tesouro ao peito, oremos: “Atei os meus braços com a tua Cruz, Senhor, e nunca os meus braços chegaram tão alto”. Hoje, Senhor, não te posso tocar, beijar, abraçar, mas prometo que “hei de fazer florir açucenas nos meus lábios; hei de apertar a mão que me castiga; hei de beijar a cinza dos escombros; hei de esmagar a dor. E hei de trazer, aqui, sobre os meus ombros, a tua cruz, Senhor”!