Homilia na Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo A 2020
1. Foram onze os domingos em que celebrámos a Eucaristia, sem a participação presencial da maior parte dos membros do povo de Deus. Vivemos uma emergência sanitária que nos impediu (e em muitos casos ainda impede) de fazer a experiência da comunhão sacramental do Corpo e do Sangue de Cristo, no Pão santo e no Vinho novo da Eucaristia. É verdade que bispos e presbíteros continuaram a celebrar, não de forma privada e muito menos para si mesmos. De alguma forma, uma vez que todos formamos um só Corpo, aqueles que presidem à Eucaristia celebraram pelo povo e o povo de Deus tornara-se presente neles e por meio deles, uma vez que também eles são membros deste povo. Entretanto, generalizaram-se e melhoraram-se as transmissões das celebrações, pelos meios de comunicação social e pelas redes sociais, que permitiram manter algum contacto, proximidade e familiaridade entre nós.
2.Agora, que retomamos lentamente a forma normal de participação presencial, perguntemo-nos: que aprendizagens, que riscos e desafios temos pela frente?
2.1. Que aprendizagens? Redescobrimos, a partir de nossa casa, as variadas formas da presença de Jesus, na Eucaristia: Ele está presente onde dois ou três se reúnem em Seu nome (na família unida, tal como na assembleia reunida). Ele faz-Se presente quando se proclama, escuta e partilha a Palavra de Deus (do alto do ambão da nossa igreja, tal como através de um dispositivo eletrónico em casa). Ele faz-Se presente na vida oferecida e sacrificada de cada um pelos outros (no altar da Eucaristia, tal como na trama da vida familiar e social). A abençoada mesa da refeição familiar pode tornar-se, à imagem da Última Ceia, um lugar eucarístico de reunião, de escuta, de partilha, de ação de graças. A Eucaristia, em que participamos, a partir de casa, ensinou-nos a fazer das nossas famílias “lugares de comunhão, cenáculos de oração, autênticas escolas de Evangelho e pequenas igrejas domésticas” (AL 325). Na impossibilidade de estarmos juntos e de comungarmos o Pão santo da Eucaristia, descobrimos que somos Igreja viva, Corpo de Cristo no mundo, muito para lá do edifício visível, onde nos reunimos habitualmente. Nós, embora sejamos muitos, formamos um só Corpo, na medida em que participamos do mesmo Pão: o Pão da Palavra e o Pão da Vida eterna na Eucaristia, o Pão da unidade (há um só Pão) e o Pão da fraternidade (formamos um só Corpo!), o Pão repartido da caridade. Só acolheremos bem o dom deste tesouro espiritual da Eucaristia, se vivermos esta comunhão com Cristo, na comunhão com os irmãos. Por isso, o desejo individualista de comungar é uma negação da própria Eucaristia. A privação da comunhão sacramental pôs travão à banalização da mesma e fez-nos descobrir o valor da comunhão espiritual e de outras formas de oração e de celebração da fé. Eis algumas lições da pandemia, para redescobrir a Eucaristia!
2.2. Que riscos e que desafios? O risco maior agora é o de normalizar o que é excecional; é o de domesticar ou de confinar a fé, contentando-se em acompanhar, de casa, a celebração teletransmitida. O risco é acomodar-se ao sofá, negar-se ao encontro vivo e pessoal com a comunidade, enganando a nossa fome e a nossa sede da Eucaristia com pastilhas eletrónicas. Este risco desafia-nos: é hora de regressar à comunidade, para não cairmos no risco de viralizar a Eucaristia, os sacramentos, o povo de Deus. A Igreja, os sacramentos, o povo de Deus não são virtuais; são concretos, reais, sensíveis, naturais, materiais, de carne e osso. Por isso, “uma familiaridade com Cristo sem comunidade, sem Pão, sem Igreja, sem Povo, sem Sacramentos, é perigosa. Pode-se tornar uma familiaridade só para mim, desligada do Povo de Deus” (Papa Francisco, Homilia, 17.04.2020).
3.Que este prolongado deserto sem o pão eucarístico não nos deixe esquecer as obras do Senhor nosso Deus, mas nos faça voltar à memória viva da Eucaristia; que a aridez destas longas semanas desperte em nós a fome d’Aquele que Se nos dá como verdadeira comida e verdadeira bebida, no Corpo e Sangue da Eucaristia!