HOMILIA NO XXI DOMINGO COMUM B 20214
Pároco ausente
1. Há três anos não foram as palavras duras de Jesus, no final do Discurso do Pão da Vida, que provocaram o escândalo e a divisão entre os ouvintes portugueses. Não. O que provocou uma acesa polémica nacional foi o texto de São Paulo sobre o Matrimónio e a célebre frase «as mulheres submetam-se aos maridos como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja». Ainda por cima o texto fora proclamado por uma mulher, sem quaisquer sinais de incómodo. Pois bem, vamos então roer a côdea do texto, com duas notas, que nos podem ajudar à digestão de uma tal «submissão»:
2. Primeira Nota: São Paulo, ao falar de submissão, acrescenta algo que transforma por completo o tipo de relação entre homem e mulher: em primeiro lugar, porque esta «submissão» diz respeito não apenas à mulher, mas também ao homem: ambos devem ser mutuamente “submissos no temor de Cristo”. Esta submissão é mútua e é uma submissão a Cristo. Nisto, na paridade, na igualdade da condição do homem e da mulher, diante de Cristo, São Paulo não é reacionário, mas revolucionário. Em Cristo, não há homem nem mulher. Em Cristo, somos um só. Homem e mulher, diz a Escritura, são uma só carne. E não há aqui carne de primeira nem carne de segunda!
3. Segunda nota: se o modelo desta submissão é Cristo, então esta submissão não é equiparável àquela das relações de poder e de domínio dos mais fortes sobre os mais fracos. Não. O Apóstolo é claro: “As mulheres submetem-se aos maridos como ao Senhor”. Ora, este termo de comparação “como ao Senhor” revoluciona o tipo de submissão de que aqui se fala. Não é mais a escravidão! Não é a sobreposição! Não é o domínio do mais forte sobre o mais fraco. Não. Portanto, “submissão” não é domínio, poder ou violência de um sobre outro. Na verdade, o amor exclui todo o género de submissão. Em Paulo, esta submissão não significa menor importância ou subserviência, mas o dar prioridade aos outros, como forma de atenção e cuidado; não centrar a vida e o pensar em si próprio, mas no amor. Entre os cônjuges, esta recíproca «submissão» deve entender-se como uma pertença mútua livremente escolhida, na fidelidade, respeito e solicitude.
4. Alguém poderia sugerir: então porque não se muda o texto, para que não se deem interpretações incorretas? Os textos não se mudam; o que é preciso é formar e educar os leitores e ouvintes, para os entender, contextualizar e a atualizar e aplicar à vida. Por exemplo, não se mudam os versos épicos de Camões, porque não correspondem à mentalidade atual e até, em alguns casos, podem causar escândalo. Isso seria cair na arbitrariedade e na ditadura das modas e na imposição da cultura única. É por isso que se estuda Camões nas escolas, para que todos tenham acesso à beleza dos seus versos, dentro dos condicionalismos da sua época (cf. Nota da CEP, 24.08.2021).
5.Irmãos e irmãs: A Palavra de Deus, sempre viva e atual, deve ser sempre escutada com a sua sonoridade original. O próprio Jesus deu o exemplo ao relê-la e reinterpretá-la, à luz da nova realidade que era Ele próprio e a situação daqueles a quem se dirigia. Conservar a Palavra de Deus e a Tradição é continuar a fazê-las ressoar em assembleias vivas, como as pautas de música dos grandes autores. Elas permanecem atuais, porque continuam a alegrar corações, a criar sonhos e a gerar estéticas novas, cada vez que se executam.
Se assim é com os grandes textos e as grandes obras de arte, quanto mais não será com a Palavra de Deus?! Esta não pode deixar de nos escandalizar, de nos fazer pensar fora da caixa e nos provocar a tomar uma decisão! Afinal as duras palavras, sejam as de Jesus ou as de Paulo, são espírito e vida! Rezemos então: “Dai-nos, Senhor, uma boa digestão” (São Tomás Moro).