Vede, irmãos, como Abraão, nesta sua oração, destemida, não se limita a reclamar de Deus, uma justiça retributiva, “para que não pague o justo pelo pecador”. Ele atreve-se, pouco a pouco, a sondar e a perscrutar, em profundidade, o coração de Deus, e a apelar a uma misericórdia divina, pela qual, em atenção a alguns justos, sejam salvos todos os pecadores. Uma justiça que fosse apenas justa acabaria por se tornar injusta. Porque o que é devido ao pecador, não é apenas a conversão e a reparação, mas também a abundância do perdão, que recria e salva.
No seu regateio progressivo, Abraão deixa-nos antever: não será por 50, 45, 40, 30, 20 ou 10 justos, na cidade, que todos os outros serão salvos. Porque não os há, em nenhum tempo e em nenhuma cidade. Nós sabemos bem que o único Justo, pelo qual somos salvos, é Jesus Cristo. “Por um só justo”, que carregou sobre si as nossas culpas, é que foram salvos todos os pecadores. “Ele anulou o documento da nossa dívida, cravando-o na Cruz” (2.ª leitura), donde brota a fonte da misericórdia.
Por isso, nesta oração de Abraão, podemos vislumbrar, em esperança, o rosto da misericórdia de Deus, de um Deus, que Jesus nos revela, como Pai bondoso. E de um Pai não podemos esperar apenas que faça justiça, dando a cada um o merecido, mas que ofereça a misericórdia, na abundância do Seu amor por nós.
Como Abraão, unidos em oração peçamos, pois, ao Senhor, pelas pessoas da nossa terra, da nossa cidade, pelas suas gentes, pelo seu pão, pelos seus sonhos; e pedi por mim, e por todos os sacerdotes, para que sejamos sempre dos outros e para os outros, o rosto da misericórdia de Deus e da Sua compaixão.
HOMILIA NO XVII DOMINGO COMUM C 2016 (sobre o sacerdócio)
Julho tem sido fértil, na vida da nossa Igreja. Houve ordenações na Sé. Há missas novas a animar as paróquias. E são muitos (entre os quais me conto) a celebrar o seu jubileu sacerdotal. Por isso, gostaria de partir da grandiosa figura de Abraão, «nosso pai na fé», para contemplar dimensões tão belas, como essenciais, da identidade e da missão do Padre. Destacaria apenas três.
1. EM PRIMEIRO LUGAR, ABRAÃO, NOSSO PAI NA FÉ, É UM «AMIGO DE DEUS» E UM «AMIGO DOS HOMENS»!
O Senhor - diz a 1.ª leitura - continuava junto de Abraão. Nesta intimidade da oração, Deus habita o coração de Abraão e faz dele Sua morada, onde permanece! A oração é, em Abraão, um tratado de amizade com o Senhor. E, na base desta amizade, ele atreve-se a pedir, a interceder, a insistir, e a lutar pelo seu povo.
Nesta figura de Abraão, antevejo o sacerdócio ministerial, como experiência radical de uma vida projetada em Deus, e de uma especial amizade com Cristo. E vejo ainda o Padre, como aquele a quem Jesus chama amigo, “o amigo de Deus” e “o amigo” do Seu povo, um mediador orante, e não um gestor habilidoso. Nesta medida, o padre é «um pai na fé», que luta, negoceia, regateia, reza e intercede junto de Deus, pelo pão e pelo perdão dos seus filhos. «Pai» não é só a primeira invocação da oração, que Jesus nos ensinou; ela deve ser também a primeira marca da identidade sacerdotal.
2. EM SEGUNDO LUGAR, ABRAÃO, PEREGRINO, CHAMADO A SAIR DA SUA TERRA, É A IMAGEM DO HOMEM, DESVIADO DO SEU LUGAR.
Abraão, a caminho da Terra Prometida, de uma terra sem território, sem lugar no mapa, é uma projeção antecipada d’Aquele Jesus, “hóspede e peregrino no meio de nós” (Prefácio Comum VII), que andava, de terra em terra, sem lugar onde reclinar a cabeça.
Creio que é parte fundamental do sacerdócio estar exposto à falta de uma terra, para assim se projetar em Deus. O Padre não tem, por isso, “um lugar” em lugar nenhum deste mundo, para poder estar no coração de tudo e ser de todos. «A porção da sua herança é o Senhor» (Sl 15,5).
3. POR ÚLTIMO, NÃO PODIA DEIXAR DE VISLUMBRAR, EM ABRAÃO, O ROSTO DA MISERICÓRDIA DIVINA!
Abraão não se limita a reclamar uma justiça retributiva, “para que não pague o justo pelo pecador”, mas atreve-se, pouco a pouco, a sondar e a perscrutar, em profundidade, o coração de Deus, a apelar a uma misericórdia divina, pela qual, em atenção a alguns justos, sejam salvos todos os pecadores. Abraão deixa-nos antever, no seu regateio, que não será por 50, 45, 40, 30, 20 ou 10 justos, na cidade, que todos os outros serão salvos. Nós sabemos bem que por “por um só justo”, foram salvos todos os pecadores. E o único Justo, pelo qual somos salvos, é Jesus Cristo. Ele anulou o documento da nossa dívida, cravando-o na Cruz. Nesta oração de Abraão, podemos vislumbrar, em esperança, o rosto da misericórdia de Deus, que é Pai e é amigo, e da Sua infinita compaixão pelo Seu povo.
Também aqui, o padre sabe-se chamado a amar e a interceder pelo seu povo, a lutar e a sofrer com as pessoas e por elas, a chorar os seus pecados, a rir e a sorrir, com as suas alegrias.
Pedi, pois, ao Senhor, pelas pessoas da nossa terra, da nossa cidade, pelas suas gentes, pelo seu pão, pelos seus sonhos; e pedi por mim, para que seja sempre dos outros e para os outros, o rosto da misericórdia de Deus e da Sua compaixão.