Homilia no XXX Domingo Comum A 2023
1. Mais uma vez, uma pergunta a Jesus, para O pôr à prova. O homem, que conhecia de fio a pavio a Lei, isto é, a Torá, os cinco primeiros livros da Bíblia, via-se perdido numa floresta de regras. Eram nada mais nada menos que 613 preceitos, dos quais 365 proibições (tantas quantas os dias do ano) e 248 obrigações (tantas quantas se julgavam ser os membros do corpo humano). O que o legista quer agora saber é qual o mandamento mais importante!
2.Na resposta, Jesus surpreende-(n)os em três frentes:
2.1.Primeira surpresa: a pergunta do entendido da lei apontava apenas para um mandamento. E Jesus, na resposta, cita dois. O primeiro, do Livro do Deuteronómio, fala de «amar a Deus, com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente» (Dt 6,4-5). Não nos basta um coração ardente, um amor romântico, sentimental ou devoto; é preciso fazer deste amor a Deus uma decisão da vontade, um compromisso, uma entrega pessoal e total ao Senhor, que nos quer inteiros e não com as «sobras». O segundo mandamento citado por Jesus está escrito no Livro do Levítico e prescreve o dever de «amar o próximo como a si mesmo» (Lv 19,18). Ora, para Jesus, este mandamento não é apenas o segundo, é semelhante ao primeiro, isto é, faz corpo com ele. Na prática, Jesus é claro: o amor a Deus é verificável no amor ao próximo. Nesta perspetiva, o amor a Deus e o amor ao próximo não são dois mandamentos diversos, mas duas faces da mesma moeda, nas quais se vislumbram o rosto do Pai e a face do irmão.
2.2.Segunda surpresa: a pergunta do doutor da lei restringia-se apenas ao que estava escrito nos primeiros cinco livros da Bíblia (A Lei – a Torá). Ora, Jesus diz que destes dois mandamentos pendem e dependem toda a Lei e os Profetas, isto é, toda a Escritura.Tudo o mais não passa de comentário!
2.3.Se quiséssemos acrescentar aqui uma terceira surpresa, seria preciso escutar a resposta de Jesus à pergunta sobre “quem é o meu próximo” (Lc 10,29), que Jesus ilustra com a parábola do Bom samaritano. Ali o próximo não é exclusivamente a pessoa da minha família, da minha raça, do meu país, da minha religião, do meu grupo. Não. Ao amor não lhe interessa se o irmão ferido vem daqui ou dacolá (FT 62). O amor não tem fronteiras. Para Jesus, não interessa quem é o meu vizinho, quem é o meu próximo, mas que eu me torne próximo e vizinho de quem quer que seja que Deus coloque no meu caminho!
3.Irmãos e irmãs: este Evangelho previne-nos para o risco da dupla personalidade, na vivência da nossa fé: de um lado teríamos algum tempo de sobra e algum espaço para o amor a Deus, para as rezas e devoções, para os deveres religiosos e para dar lugar aos sentimentos piedosos e… do outro, teríamos a prática do amor concreto ao próximo, segundo o grau de mérito ou de simpatia pelo outro. Não. Sejamos claros: amo o próximo quando estou a celebrar a fé e a rezar e nesse encontro me deixo tocar, preencher e transformar pelo amor de Deus. E amo a Deus, quando sirvo o próximo, reconhecendo nele a imagem do Deus a quem rezo. Não amo a Deus se, por alguma razão, o meu próximo está distante do meu amor por ele.Não amo verdadeiramente o próximo como irmão se não me move o amor de Deus. Também aqui, nestes dois mandamentos, não separe o homem o que Deus uniu!
4.Irmãos e irmãs: estamos a poucos dias da Solenidade de Todos os Santos. Os Santos encontraram a fonte e a sua capacidade de amar o próximo, a partir do seu amor e do seu encontro com o Senhor, sobretudo na Eucaristia. E este encontro com o Senhor ganhou realismo e profundidade no serviço aos outros. A conclusão é bem clara: o amor a Deus e o amor ao próximo são inseparáveis, constituem um único mandamento. Mas, ambos vivem e bebem daquela fonte do amor maior com que Deus a todos nos amou primeiro e inteiro!