Liturgia e Homilias na Sexta-feira Santa 2023
Destaque

A Homilia, em sintonia, com a de Quinta-Feira Santa, em que se acentuava a ideia da Ceia e da Presença de Cristo, que continua a dar-se hoje por nós em cada Eucaristia, desenvolve agora a ideia de uma paixão que também continua hoje. As reflexões estão inspiradas na leitura do livro de Tomás Halík, A tarde do cristianismo, sobretudo nas páginas 110 a 122, 190, 196-197, 214-217. “… Também a fé tem de morrer para ressuscitar, tem de passar pelo madeiro da dúvida, pela aridez e pela desolação, tem de descer aos infernos da dor e do abandono, tem de suportar as trevas do silêncio, tem de atravessar a noite escura da Cruz e permanecer no silêncio do Sábado Santo, em que a alma é consumida pela ausência de Deus, em que a única luz que nos guia é o desejo de Deus”.

 

 

Homilia na Celebração da Paixão do Senhor – Sexta-feira Santa 2023

1. Há trevas ao meio-dia, quando Jesus é crucificado! Ouvimo-lo nesta narrativa da Paixão. E os outros três Evangelhos anotam: “a partir da hora sexta fez-se trevas sobre toda a terra até à hora nona” (Mt 27,45; Mc 15,33; Lc 23,44-45), quando o sol se eclipsou (Lc 23,23,45). Mateus acrescenta, depois do último suspiro de Jesus: “a terra tremeu e as rochas fenderam-se” (Mt 27,51).Para São João, desde que Judas entregou Jesus “é noite” (Jo 13,30).

2. Gostaria de meditar convosco nestas trevas desde o meio-dia às três da tarde, como um símbolo dos tempos que vivemos. Parece confirmada a anunciada morte de Deus, silenciado e desprezado pela nossa cultura atual, seduzida pelas suas razões e conquistas. A memória ferida da pandemia, a eclosão brutal de uma nova guerra fria na Europa, a experiência tamanha do sofrimento de tantos refugiados e perseguidos sem resposta humanitária, a questão e a banalização do mal, parecem fazer ressoar hoje em nós, o grito de Jesus abandonado na Cruz. Deus parece calado, escondido num silêncio incómodo e ensurdecedor! A tudo isto, veio somar-se a revelação dos abusos abomináveis de menores na Igreja e o sistémico encobrimento dos abusadores. Este escândalo tornou-se para alguns a gota de água, a pedra de tropeço, para o abandono definitivo da sua prática religiosa. Esta tão grave doença no Corpo da Igreja não deixa de provocar, até para cristãos de fé mais sólida, um terramoto interior, uma fenda aberta, uma ferida sangrenta, na confiança que depunham na Igreja. Este eclipse da presença de Deus apresenta-se-nos hoje como uma espécie de contínua e dolorosa Sexta-Feira Santa da História. É uma paixão contínua, pela qual deveremos passar um longo inverno, para chegar à Páscoa de uma nova Primavera da fé e da Igreja.

3. Este tempo de trevas, que nos atinge como “uma flecha que voa em pleno dia” (Sl 91,5), é uma oportunidade para redescobrirmos o rosto do Deus de Jesus Cristo: um Deus Crucificado, cujo único poder sobre nós é o do Seu amor invencível; um Deus que leva até à Cruz o Seu amor apaixonado por nós; um Deus que não responde às nossas perguntas com um discurso filosófico, mas colocando-Se do nosso lado, do lado das vítimas, do lado dos sofredores, do lado dos injustiçados, do lado dos feridos, do lado dos descartados e dos silenciados. O nosso Deus, Crucificado por Amor, é um Deus que não sai do Seu silêncio para responder aos nossos protestos, para Se defender da Sua inocência ou da Sua aparente inércia, nem sequer levanta a Sua voz para nos acusar; antes, é um Deus que toma sobre Si as nossas dores, solidário com os nossos limites; é um Deus que não faz milagres para nos convencer, mas que Se entrega até ao fim, num Amor sem medida, que só assim nos atrai aos seus braços e nos converte.

4. O desafio, pois, nesta hora das trevas desde o meio-dia à tarde do cristianismo, é o de aceitarmos perder a nossa fé, para acreditar de modo novo; é o de deixarmos morrer a nossa fé em Deus, essa fé tantas vezes vivida como posse, como herança, como emoção, como tradição, para que ressuscite em nós a verdadeira fé: a fé de Deus (Mc 11,22), isto é, a mesma fé de Jesus, a sua arriscada confiança em nós. Ora, essa fé de Deus, essa fé no amor de Deus, que se vive sob a forma de esperança, foi crucificada, morta e sepultada em Jesus, por nós. Não deverá então a nossa fé imitar esta humilhação de Cristo? Não terá a nossa fé de morrer e de esvaziar-se das nossas imagens e representações, para se tornar uma fé preenchida pela plenitude da presença de Deus? Pensemos que a fé cristã, tal como a Igreja, vive do mistério pascal, e por isso também a fé tem de morrer para ressuscitar, tem de passar pelo madeiro da dúvida, pela aridez e pela desolação, tem de descer aos infernos da dor e do abandono, tem de suportar as trevas do silêncio, tem de atravessar a noite escura da Cruz e permanecer no silêncio do Sábado Santo, em que a alma é consumida pela ausência de Deus, em que a única luz que nos guia é o desejo de Deus. Não tenhamos medo de deixar depositados no túmulo os restos mortais de uma fé infantil, cansada, moribunda e adormecida. Essa fé não permanecerá aí no túmulo, porque o Amor é mais forte do que a morte.  Essa fé nua, livre de todo o lastro, ressurgirá com nova folhagem, nova flor e novo fruto.

5. Irmãos e irmãs: ontem, hoje, amanhã, mais cedo ou mais tarde, Deus permitirá passarmos pela escuridão de uma Sexta-Feira Santa, pela sensação de que Ele nos abandonou. Uma fé, que se quer madura não pode senão abraçar esta experiência das trevas desde o meio-dia às três da tarde, porque ela faz parte da história da Paixão de Jesus e faz parte do caminho espiritual do crente e da Igreja. Sejamos capazes de abraçar esta Cruz, de nos abandonar a este Deus silencioso, sem pretender caiar de branco o túmulo das nossas dependências e misérias.Aqueles que perseverarem nestas noites escuras da alma experimentarão, mais cedo ou mais tarde, a luz da manhã de Páscoa e a transformação pascal da sua fé.  Então, a tua fé será selada com o testemunho pessoal de que Cristo, entregue e morto por ti, está vivo, vive em ti e quer-te vivo para sempre (cf. CV 1; 124).

 

 

 

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