HOMILIA NO XV DOMINGO COMUM C 2022
1. Ninguém gosta de ser incomodado ou perturbado. Menos ainda em tempo de férias! Mas a parábola do bom-samaritano espicaça-nos a consciência, quando a tentação é olhar para o lado ou passar ao lado dos feridos e das feridas do próximo, como o fizeram aquelas duas tristes figuras, sacerdote e levita, afinal duas pessoas tão religiosas e tão impiedosas! Na verdade, diante do homem meio-morto, descartado, abandonado na berma da estrada, só há dois tipos de pessoas: aqueles que cuidam do sofrimento ou aqueles que passam ao lado. Quem não é salteador, quem não passa ao lado, ou está ferido ou carrega aos ombros algum ferido (FT 70). A pergunta surge espontânea, sem rodeios, direta e determinante, ao escutarmos esta parábola: Com quem te identificas? A qual deles te assemelhas (FT 64)? Precisamos de reconhecer em nós a tentação de nos desinteressarmos, de nos descartarmos dos mais frágeis. Crescemos em ciência, conhecimento e tecnologia, mas somos hoje mais analfabetos no acompanhar, no cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis. Habituamo-nos a olhar para o outro lado, a passar à margem, ignorar as situações até elas nos caírem diretamente em cima (FT 73-74).
2. Não podendo aqui explorar todos os pormenores da parábola, eu deixaria três breves notas para nosso desassossego, para agitar as águas do verão:
2.1.Duas pessoas muito religiosas passam ao lado! Não é automático que quantos frequentam a casa de Deus e conhecem a Sua misericórdia saibam amar o próximo. O facto de creres em Deus e de O adorares não é garantia de viveres como agrada ao Senhor (FT 74). Tu podes conhecer a Bíblia inteira, podes conhecer todas as rubricas litúrgicas, podes conhecer toda a teologia, mas do muito saber não nasce espontaneamente o muito amar: o amor segue outro caminho: o do olhar que vê a necessidade do próximo e age de acordo com isso (DCE 31 b).
2.2.Um samaritano compadece-se! Não pergunta «quem é o meu próximo?» nem diz «porventura sou guarda do meu irmão (Gn 4,9)? Não diz: «Isto não é comigo, não me diz respeito, não é da minha família, da minha raça ou da minha terra (Lv 19,18), não é problema meu». Ao amor não lhe interessa se o irmão ferido vem daqui ou dali (FT 62). Este samaritano faz-se próximo de um ferido que o surpreende no caminho. Este samaritano é filho de um tal “povo estúpido que vive em Siquém” (Sir 50,25.26), é tido como um judeu cismático, um zé-ninguém, um homem que não conhece o verdadeiro Deus e não frequenta o Templo. Mas é precisamente ele que é capaz de se comportar segundo a vontade de Deus, sentindo compaixão pelo irmão necessitado e socorrendo-o com todos os meios à sua disposição e dando do seu tempo. Assim, em jeito de provocação, Jesus propõe-nos como modelo do amor ao próximo alguém que não tinha fé! Este é o paradoxo: Quantos dizem que não acreditam podem viver melhor a vontade de Deus do que os crentes (FT 74). Pensemos em muitas pessoas que conhecemos, talvez agnósticas, que praticam o bem sem olhar a quem. Afinal, quem é que precisa de se converter?
2.3. Presta atenção ao teu coração! Se caminhares pela estrada e vires um pobre deitado no chão, e passares sem olhar para ele ou pensares: “isto é efeito do vinho, da droga”, questiona-te, não para saberes se aquele homem está mesmo embriagado ou drogado. Pergunta-te a ti mesmo se o teu coração não se endureceu, se não congelou! Se diante de uma pessoa necessitada não sentires compaixão, se o teu coração não se comover, quer dizer que és tu que estás meio-morto. A ti, a cada um de nós, Jesus repete aquilo que disse ao doutor da Lei: «Vai e faz tu também o mesmo!» (Lc 10, 37). Isto é a Lei e os Profetas. Isto é que é o Evangelho em carne viva. “O resto é comentário” (Hillel, cit. FT 509; nota 55).
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Seguimos na homilia o capítulo II da Encíclica Fratelli tutti; Audiência, 27.04.2016; Angelus, 14.7.2019