Homilia na Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus | 54.º Dia Mundial da Paz | 1.1.2021
1. “Se ganhar, bebo para comemorar. Se perder, bebo para esquecer”. Tenho a impressão de que a taça de champanhe, na passagem de ano, terá sido (será) mais para esquecer o ano velho, com a sua cara de mau, do que para saudar o ano novo, ainda com um ar de bonzinho. Por momentos, temos a ilusão de que nos bastará rasgar o velho calendário, como quem muda de roupa, para virar a página da história e fechar de vez o álbum das más recordações de 2020. Em vez de estarmos a agarrar e a abraçar o ano novo de 2021, a COVID-19 põe-nos a sonhar com 2019, quando ainda não havia pandemia! Temos muita dificuldade em aceitar esta crise sanitária, económica, social e até eclesial, que atingiu a todos, sem distinções, destapando as nossas ilusões e pecados, e pondo em causa os nossos modelos e estilos de vida. Este flagelo foi um teste considerável e ocasião favorável para nos convertermos ao essencial e tomarmos consciência da nossa abençoada pertença comum como irmãos: todos ligados, todos cuidadores de todos e todos sob o cuidado de todos.
2. Esta crise não acabará por um passe de magia, ao toque das doze badaladas ou com as doze uvas-passas da meia-noite. E nem sequer terminará miraculosamente com uma vacina gratuita e universal. Então, como viver a bênção e superar o trauma desta crise? Maria, que ouvia as conversas dos pobres pastores e ouvirá as sentenças dos magos e adivinhos da ciência, olhava atentamente para Jesus, como quem se detém diante d’Aquela novidade de Vida, que era o seu Filho. Também Ele viera pôr em crise todas as suas seguranças e projetos. E, diante desta crise, Maria não faz prognósticos, nem deita as mãos à cabeça, nem deserta para voltar ao «antigamente». Simplesmente – diz o Evangelista – “Maria conservava todos estes acontecimentos, meditando-os em seu coração”(Lc 2,19.51).
3. Esta é a grande lição de Maria, neste primeiro dia, para todos os dias do novo ano: não vamos beber para esquecer. Vamos guardar e recolher no coração, analisar, meditar, relacionar, compreender todos estes acontecimentos à luz do Evangelho, para crescermos com esta “crise”, que nos apura e depura por dentro. Que ensinamentos recolhemos dos acontecimentos provocados pela pandemia? Ela ensinou-nos que as nossas escolhas pessoais têm sempre reflexos sociais; que só unidos e cuidando dos mais frágeis podemos vencer os desafios globais. Aprendemos a habitar mais e melhor a nossa casa e a valorizar a família, como primeira escola de fraternidade, primeiro hospital do cuidado de uns pelos outros, primeira rede essencial da missão e da transmissão da fé. Esta crise acelerou mudanças que estavam em curso, no mundo do ensino e do trabalho, na prática da fé. Houve um gigantesco sobressalto, no uso das novas tecnologias e meios digitais, criando-se formas diferentes de relação, de pertença, de presença, de participação, de socialização, de comunicação e de celebração da fé. É, pois, todo um velho mundo que apodrece, morre e desaparece, mas, ao mesmo tempo, esta crise dá à luz um novo início, traz com ela a promessa e a esperança de um mundo renovado.
4. À luz do Evangelho, temos esta confiança de Maria: não estamos sozinhos. Deus caminha connosco e continuará a fazer germinar as sementes do seu Reino no meio de nós e apesar de nós. Pelo muito que sofremos, pelos muitos irmãos e irmãs que nos morreram, sabemos que muita vida nova há de ainda brotar, florir e frutificar(cf. Jo 12,24). As privações e provações sofridas, o suor, sangue e lágrimas, que esta crise pandémica nos faz verter, são os odores e sabores deste vinho novo, desta novidade do tempo que 2021 nos dará a beber e a viver.
5. Irmãos e irmãs: 2020 deixa-nos marcas inapagáveis, que não se podem reverter. Diria mesmo que o ano de 2020 foi um ano vintage. E a receita para o valorizar em 2021 é dada por Jesus: “Para vinho novo, odres novos” (Lc 5,36-38). Não queiramos dar um passo atrás, voltar ao velho normal, às velhas alegrias ou velharias, às práticas ou soluções, que já não nos servem; são como roupa velha, que nos fica curta nas mangas. Estejamos antes disponíveis para a mudança, para a novidade de vida, para uma justa atualização, para uma nova etapa na evangelização. Para vinho novo, odres novos. Bebamos deste vinho novo. Bebamo-lo, pela taça da alegria ou pelo cálice do sofrimento, para saborear até à última gota a graça do ano de 2020 e o ano da graça de 2021.