Homilia no XXIX Domingo Comum A 2020
1. O fantasma da pandemia ensombra o nosso verão, por mais máscaras que usemos para espantar o medo do contágio. E as cenas bíblicas deste domingo parecem pintar-nos o retrato sombrio deste tempo. Em terra ou no mar, a tempestade é perfeita. No alto do monte Horeb, o profeta Elias, fugitivo, entra em confinamento, passando a noite na gruta onde se escondera, com medo da perseguição. No alto-mar da Galileia, Pedro dá voz ao medo dos discípulos, no meio de uma tempestade, que ameaça afundar a barca. Esta cena evangélica da tempestade inspirou o Papa Francisco naquela insólita oração na praça de São Pedro vazia, onde nos dizia: “À semelhança dos discípulos do Evangelho, fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda. Demo-nos conta de estarmos no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo todos importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento. E, neste barco, estamos todos” (Mensagem Urbi et Orbi, 27.03.2020). E se não estamos todos no mesmo barco estamos todos debaixo da mesma tempestade, com réplicas, aqui e acolá, que nos assustam, pelas consequências económicas e sociais que já se divisam.
2. De que mais precisaremos nós, então neste verão atípico? De quebrar, a todo o custo, o silêncio do confinamento, de pedir licença de ruído, de meter a cabeça na areia, com evasões que nos libertem do fantasma da pandemia?! Eu creio que nós precisamos muito de imitar o profeta Elias, a quem Deus dirige a palavra, dizendo: “Sai e permanece no monte à espera do Senhor”. E vede: nem os ventos fortes, nem os terramotos, nem o fogo lhe traziam notícias de Deus. Deus passou por ali, sem espavento, sem pôr a boca no trombone. Deus falou no murmúrio de um silêncio que se desvanece. Elias ouviu a voz de Deus num fino silêncio, no sibilar de um vento suave, no sopro de uma aragem ligeira.
3. Durante semanas, neste ano de 2020, reinou o silêncio nas nossas ruas; um silêncio dramático e inquietante, mas que nos deu ocasião para ouvir o clamor dos mais vulneráveis, dos deslocados e do nosso planeta gravemente enfermo. O silêncio que experimentámos nesta pandemia foi um silêncio purificador. Não o devemos perder agora, sob pena de não compreender a Palavra que Deus nos quer dizer, do meio desta tempestade. Disse o Cardeal Tolentino: “Eu comparo muito o silêncio àquilo que é o espaço entre as palavras num texto. Se as palavras não tivessem um espaço, não se leriam. Sem o silêncio, a nossa vida não se lê”.
4. Este mês, para ser a(o)gosto de Deus, devia ser um tempo de silêncio interior e exterior, sem renitência à penitência, que nos convoque para estar simplesmente, em saída de nós mesmos, permanecendo à espera que o Senhor passe e nos fale, sem dizer palavra. Muitas vezes encontramo-nos diante do silêncio de Deus, experimentamos quase um sentido de abandono, parece-nos que Deus não ouve e não responde. Mas este silêncio de Deus não marca a sua ausência. O cristão sabe bem que o Senhor está presente e escuta, mesmo na escuridão da dor, da rejeição e da solidão. O silêncio é um chamamento a perceber que, acima de tudo, temos de colocar a confiança no Senhor, nestas horas em que tudo parece naufragar.
5. Irmãos e irmãs: não tenhamos medo do silêncio. Saiamos da caverna dos nossos medos e fiquemos o tempo que for preciso à espera da ligeira brisa, que vem serena depois da tempestade. Vale sempre a pena esperar, no alto de um monte ou a caminhar sobre as águas. Escreveu Fernando Pessoa: “Às vezes, ouço passar o vento e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido”. Por isso, vos peço: silêncio, que Deus vai passar; silêncio que Deus vai calar!