Homilia – Festa em honra de Nossa Senhora da Hora 2020
Com(o) Maria edificar a Igreja Doméstica
Neste ano e neste tempo tão especiais, resolvi também hoje fazer uma exceção, na nossa reflexão, propondo-vos para escuta e meditação os textos da Liturgia, previstos para o dia de hoje, quinta-feira da VI Semana da Páscoa. Eles ajudam-nos a viver esta “Hora”, em que estamos ainda privados da celebração Eucarística, com a participação física do Povo de Deus. Com o dever de recolhimento cívico, estamos ainda, a maior parte de nós, “confinados em casa”, a viver este longo tempo de jejum da Eucaristia, de abstinência dos afetos mais primários, um tempo que é de insegurança e de incerteza quanto ao futuro. Perguntamo-nos, então, como pode Maria, Mãe de Jesus e Mãe da Igreja, ensinar-nos a viver esta Hora, este tempo de “gestação”, para que esta crise provoque o parto de um tempo novo, para que não caiamos na tentação de querer voltar à vida de antigamente?!
I. A primeira coisa, que Maria nos ensina, nesta hora de pandemia, é reaprendermos a estar em casa, a habitar a nossa casa, a viver em família.
Maria conhece várias casas ao longo da sua vida (ERMES RONCHI, As casas de Maria, Ed. Paulinas, Prior Velho 2009):
§ A casa dos inícios, na Anunciação (Lc 1,26-28). Diz o Evangelho que o Anjo foi ao encontro de Maria, estando Ela em Sua casa. A casa de Maria é ali uma casa que acolhe a presença de Deus e onde Maria se recolhe inteiramente para Ele. Ali Maria ensina-nos a habitar a nossa casa, como lugar da manifestação de Deus, no nosso quotidiano, na simplicidade da vida doméstica, em cada gesto feito por amor.
§ Na visita à sua prima (Lc 1,39-56), Maria e Isabel transformam a casa, onde coabitam estas duas grávidas, numa casa de louvor, num abrigo de profetas, num espaço de afetos, onde mora gente pobre, mas feliz pela sua fé.
§ Recebida pelo seu esposo José (Mt 1,18-25), homem justo, Maria habita uma casa cheia de dúvidas e de sonhos, de provações e inquietações, de silêncios cúmplices e mãos dadas.
§ Em Belém (Mt 2,9-11) Maria faz do Presépio a Casa do Pão, uma casa de dons, uma casa de porta aberta à visita dos pobres pastores e dos Magos ricos, uma Casa para todos.
§ Em Nazaré, a Sagrada Família, de Jesus, Maria e José, vive trinta anos de “confinamento”, de “escondimento”, “de silêncio”, com as aprendizagens básicas e as incompreensões diárias, o trabalho humilde, numa existência quotidiana honrada, sem milagres nem efeitos especiais.
§ Em Caná da Galileia (Jo 2,1-11), Maria partilha as aflições do jovem casal, cujas bodas estão em perigo. Diz a Jesus “não têm vinho”, como podia dizer “não têm trabalho, não têm de comer, não têm dinheiro, não têm esperança, vivem sem alegria, não veem uma saída” a breve prazo. Maria não passa ao lado. Antevê e provê. E ali está Jesus, ali se vê que onde está um casal cristão também está Cristo.
§ Junto à Cruz de Jesus, Maria vê a sua maternidade ferida pela morte do Filho e é recebida em casa pelo discípulo amado (Jo 19,25-27). Este confinamento é o que mais se assemelha ao que estamos a viver. Entre a morte e a ressurreição de Jesus, entre aquele «daqui a pouco» e aquele «pouco depois» - de que fala Jesus (Jo 16,16-20) - entre a escuridão mais densa das trevas da morte (Mc 15,33) e a aurora da manhã de Páscoa (Mc 16,2), Maria experimenta o eclipse do Sol, sem arco-íris à vista. Maria vive aquele «sábado santo», como um longo tempo de exílio, em que o Filho lhe fora tirado. E, na privação do Filho e na provação extrema, Maria mantém-Se fiel ao seu «sim», firme na sua fé, esperando contra toda a esperança (Rm 4,18), perseverando naquele amor que não cansa nem se cansa. Ela vive das palavras do Filho: «daqui a pouco já não me vereis e pouco depois voltareis a ver-me» (Jo 16,19). Ela sabe que Deus pode tirar do mal um bem maior. Ela acredita no fruto esperançoso do grão de trigo lançado à terra. Ela sabe que a sua tristeza se converterá em alegria, como a da mulher que está para dar à luz (Jo 16,21).
Maria ensina-nos a viver assim esta hora difícil, estes dois meses, como um longo “sábado santo”. Ela ensina-nos que o tempo da ausência, como o nosso de confinamento, não é um intervalo para esquecer, mas uma oportunidade para crescer, de modo que os sofrimentos atuais possam ser as dores do parto de um mundo novo, mais fraterno e sustentável. Em muitos momentos difíceis, posso confessar-vos que me abriguei ao colo de Maria, para ter alguma paz, para não desistir. E, ao rezar o terço diariamente, entre lágrimas e soluções, pressenti quantas vezes a voz de Maria, que me dizia, como a São João Diego: “não se perturbe o teu coração; não estou aqui Eu que sou Tua Mãe” (EG 286).
§ Mas a última casa de Maria, neste mundo, é o Cenáculo, a Sala da Última Ceia, donde nos fala hoje Jesus no Evangelho de hoje. Ali Maria está, entre a Páscoa e o Pentecostes, confinada com os Apóstolos, unida a eles em oração e partilhando com eles a refeição familiar. O Cenáculo, a sala da Ceia, emprestada outrora por um amigo anónimo, para ali Jesus celebrar a sua Páscoa com os discípulos (cf. Mt 26,19), é então a primeira Catedral da Igreja, o primeiro “Templo cristão”, que logo se ramifica em todas as casas e em todos os corações habitados pela presença do Ressuscitado.
Assim vemos que a Igreja, a vida cristã, começa em casa, começa à mesa, começa em família. Maria está a dizer-nos que nos quer mais em casa. E estando reunida com os Apóstolos, no Cenáculo, também nos diz que quer ficar connosco, em nossa casa. Acolhamos Maria, em nossa Casa, através de uma imagem que veneramos, do terço que rezamos, das confidências que lhe fazemos.
II. A segunda coisa que Maria nos ensina, nestes dias é esta: edificar e a consolidar a família, como Igreja Doméstica.
Na verdade, até aos finais do século III, os cristãos não tinham lugares próprios de culto; os primeiros templos aparecerão por volta do século IV. A primeira comunidade dos cristãos, por causa da perseguição dos judeus, não tinha Templo e começou por se reunir na casa dos próprios cristãos (cf. 1 Cor 16,19; Rm 16,5; Cl 4,15; Flm 2). Casais, como Áquila e Priscila (At 18,2-3, oferecem a sua casa, como lugar onde se reúne a «Igreja», a assembleia dos cristãos (cf. 1 Cor 16,19). Na 1.ª leitura de hoje falava-se também de Tício Justo (At 18,7) e de Crispo, que, com toda a sua família, aderem a Cristo e são batizados (At 18,8). Muitas vezes era o dono da casa que presidia às reuniões dos cristãos. Aí aprenderam os primeiros cristãos a construir uma Igreja à imagem de uma família, até que cada família aprende a edificar-se e consolidar-se à imagem de uma Igreja.
Irmãos e irmãs: nestes dias de privação e de provação, com as portas das Igrejas fechadas, oferecem-se novas janelas de oportunidades, para abrirmos uma Igreja em cada casa, em cada família cristã, chamada a tornar-se “Igreja doméstica” (cf. LG 11; AL 15;86; CIC 1657; AL ). Maria ensina-nos a fazer da nossa casa lugar do acolhimento da Palavra e do mistério da Vida e de recolhimento dos nossos sonhos e segredos; a fazermos da nossa casa lugar do louvor e da oração, espaço íntimo dos afetos, altar do sacrifício e da partilha dos dons, da fidelidade às pequenas coisas do dia-a-dia, na perseverança no amor concreto.
Aprendamos, nestes dias, a criar ou recriar um canto ou recanto, aí em casa, para a leitura da Palavra de Deus e para a oração pessoal ou familiar. Aprendamos a fazer da sala de jantar «um cenáculo» e das nossas refeições familiares uma espécie de réplica da sala da Última Ceia. Aprendamos a fazer a bênção da mesa, pelo menos aos domingos. Em casa, à mesa, aprendamos a partilhar os nossos sentimentos e a nossa vida inteira. Repartamos o pão por todos. Tomemos o alimento com simplicidade e alegria de coração. Acompanhemos, por agora, a celebração da Eucaristia teledifundida (pelo Facebook, pelo YouTube, pela TV, pela Rádio). Aproveitemos a proposta semanal de uma liturgia familiar. Façamos da nossa casa uma pequenina Igreja.
III. Estamos em pleno tempo pascal, o tempo que vai da Páscoa ao Pentecostes, que este ano celebraremos a 31 de maio, último dia do mês de Maria. Está já a passar aquela hora longa, difícil e triste do «daqui a pouco não me vereis» de que nos falava Jesus. Aproxima-se já a hora daquele «pouco depois voltareis a ver-Me». Nos dias 30 e 31 de maio, e pouco a pouco, cá nos encontraremos, nesta Casa Comum, nesta Casa da Mãe. Seja como for, a hora que vivemos é a de valorizarmos cada vez mais a nossa casa, a mesa, a família. Com e como Maria, aproveitemos esta hora, para edificar e consolidar a família como Igreja Doméstica.
E, por fim, rezemos a Maria: «Fica nas nossas casas, Mãe da fidelidade e da ternura; fica na Casa comum do nosso mundo, Estrela da Esperança. Se nos momentos de escuridão estiveres junto de nós e nos disseres que também estás à espera da aurora, as lágrimas enxugar-se-ão no nosso rosto e juntos despertaremos a aurora» (cf. T. Bello, in ERMES RONCHI, As casas de Maria, p. 129). “À vossa proteção, recorremos, Santa Mãe de Deus; não desprezeis as nossas súplicas na hora da prova, mas livrai-nos de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita”. Nossa Senhora da Hora, roga por nós!